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CONCURSO LITERÁRIO

PROFESSORA ROSINDA

DE OLIVEIRA

5ª EDIÇÃO

2022/23

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JOÃO PAULO TELES

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APOIO

1º PRÉMIO
3º ESCALÃO

VENCEDORES

2º ESCALÃO

MENÇÃO HONROSA  .  MARIA DO MAR MAGALHÃES . Lixo de uns, tesouro de outros.

3º ESCALÃO

1º PRÉMIO .  JOÃO PAULO TELES . Enquanto há vida, há esperança.

2º PRÉMIO .  FILIPA LOPES. Quando as flores morrem.

3º PRÉMIO .  MARIA SILVA VALENTE . A Virgem.

MENÇÃO HONROSA  .  MARITZA DA RITA. A Jornada do Louco.

*por decisão do Juri, nem o 1º nem o 2º escalões, mereceram atribuição de prémio.

Enquanto há vida, há esperança

 

As primeiras chuvas de outono entrelaçavam-se no fumo que saía daquela velha chaminé num fim de tarde já escuro, impeditivo de mais tarefas na agricultura depois de um dia de trabalho. Esta época do ano é assim. Joaquim, depois de soar a sirene da fábrica, sempre às seis da tarde em ponto, pega na fiel pasteleira que herdou do seu pai e coloca um velho saco de serapilheira na cabeça, em bico, caindo pelas costas, numa improvisada capucha serrana que aquece aquela viagem de pouco mais de 15 minutos. Ao chegar a casa – com a escuridão e o tempo chuvoso a não dar tréguas – o Quim do Armazém (como é conhecido na fábrica de bicicletas da vila) encosta a bicicleta na enorme caixa do milho, pendurando a sua “capa” no guiador, esperando que o calor da adega lhe tire o excesso de humidade para usar no dia seguinte. E aí vai ele até à cozinha do forno, onde Maria da Esperança se multiplica em tarefas de fim de dia para alimentar o marido e os quatro filhos. - Então, mulher, que temos hoje para a janta? – perguntou o curioso e esfomeado Joaquim, enquanto subia os dois pequenos degraus de cimento gasto daquela cozinha. Fez-se silêncio e a resposta tardou mais que o habitual. Aqueles dois ou três segundos, por entre a madeira a crepitar na fogueira e a água a ferver com batatas e couves para o porco, na panela de ferro de três pernas, pareciam uma eternidade. Maria da Esperança tinha um olhar diferente do habitual naquela quarta-feira de novembro. Um misto de cansaço e ansiedade marcavam o seu semblante, num tom bem diferente da florida bata que usava. - Está tudo bem, Maria? Parece que viste o diabo! Fala comigo, mulher de Deus! - insistiu. - Estou cansada, Quim. Não é nada – respondeu, de forma pouco convincente, não satisfazendo as interrogações do marido, que se abeirou da lareira, virando as costas ao lume para aquecer as pernas frias da viagem… e puxou da sua teimosia habitual: - Tu não me enganas. Já te conheço há mais 20 anos. Aí há coisa, mulher! Maria encheu o peito de ar, ganhou coragem e falou, com a voz meio rouca e trémula: - Estou de esperanças, Quim. Pensei que não acontecia mais. Vem aí o nosso quinto. Mal acabou o anúncio, Joaquim soltou um grito estridente e começou aos pulos virado ao pátio. Maria, já meio assustada pelo anúncio, pior ficou com a estranha atitude do pai dos seus filhos: - Que se passa, homem?! Era preciso ficares assim? Joaquim, já aparentemente mais calmo, estava, imagine-se, com um dos pés dentro de uma velha lata de tinta cheia de água: - Raisparta a brasa que tinha de se meter entre as chinelas e o meu pé. Porra que isto dói! – disse o divertido Joaquim, agora já mais refeito daquele choque, ou melhor, daquela escaldadela, para depois continuar, noutro tom: - Ó Maria, que grande notícia me deste! Mas tens mesmo a certeza? O olhar de Maria foi suficiente para responder à questão enquanto se apressou a ir buscar uma toalha de felpo, limpa, mas muito usada, para secar os pés do marido. – Vem para dentro, sai da chuva – aconselhou ela. Já de volta à cozinha, agora mais afastado da fogueira, ainda a digerir a escaldadela e a notícia da esposa, Joaquim sentou-se num pequeno banco rasteiro, daqueles com um buraco no centro, já alisado pelo passar dos anos. Pensativo, no meio daquele cheiro a fumo, que não incomoda, atreveu-se a olhar para a portinhola do forno. Abriu-a e lá dentro estava um verdadeiro maná... uma caçoila com meia dúzia de pedaços de carne envoltos em rodelas de batata. O cheiro do pitéu inunda a velha cozinha e a saliva apronta a boca para o manjar. Perante aquele preparo todo, percebendo que o dia é de festa, ainda meio a mancar dos efeitos daquela inoportuna brasa, Joaquim dirigiu-se à banca da louça, de mármore branco tosco, onde Maria preparava umas verduras. Abraçou-a pelas costas, colocando as suas mãos na barriga gestante para dizer “sim” e amparar de esperança e saúde o quinto rebento de ambos. Curiosamente, é nessa altura que os filhos Carmo, José, Pedro e Ana chegam. Estavam em casa do tio, ali a uns 300 metros, para partilhar nada mais que uma horita de banda desenhada na televisão, nessa caixa mágica que ainda não tinha chegado a sua casa. Esfomeados, mas surpreendidos com o cheiro a festa da cozinha, sentaram-se à volta da lareira, aquecendo as mãos, com a filha mais velha a abrir o interrogatório da noite: - A mãe está tão feliz. Há aqui algo que não saibamos? – questionou a irreverente Carmo, numa postura mais adulta que os seus 15 anos. Maria finge que não ouve e pisca o olho ao marido, enquanto os gémeos Pedro e Ana guerreavam por um pequeno pau com a ponta a arder (coisa natural dos seus cinco anos, apesar dos sucessivos avisos da avó de que podiam fazer xixi na cama se chiscassem no lume). Joaquim dirigiu-se à prateleira, pelo meio de pratos já quinados e com motivos florais simples na borda, para buscar uma garrafa de grés com fragmentos de um rótulo - dourado - que um dia foi inteiro. A rolha de cortiça, já corroída, faz um som inesquecível quando é rodada, como se fosse uma portada empenada ao sabor de uma leve brisa. O cheiro agora é outro. Não é mel, mas é doce, tem tons de castanho como se fosse o outono em estado líquido. - É aquela jeropiga especial, pai? – perguntou, mesmo sabendo a resposta, o espertalhão José. – Mau!!! Comida melhorada e jeropiga antes do jantar… aqui há coisa – voltou à carga a irmã mais velha. Meio sem jeito, o pai convida os filhos para a mesa, enquanto esgaça um pedaço de côdea da broa de milho que aquele formo ali ao lado cozeu quatro dias antes. - Vamos jantar. A mãe tem algo para vos dizer… – libertou-se assim Joaquim do relato, por entre um resignado e complacente abanar de cabeça da esposa. Bem mais confortável – e com toda a gente longe da fogueira para desta vez uma brasa não estragar a boa nova – Maria, com a sua criatividade, querendo dar magia ao momento, pegou na maior panela de alumínio que encontrou no aparador para dizer aos filhos: - Dentro de pouco tempo esta panela vai ser usada todos os dias cá em casa. Carmo ficou boquiaberta e corou, mas feliz. José, armado em sabichão, soltou um “eu já sabia!!!” e os gémeos olharam um para o outro, com Ana entusiasmada a perguntar se ia haver visitas todos os dias. A risada foi geral. O momento era feliz. Anúncio feito, com a família à volta da mesa, no mesmo local onde diariamente partilham os momentos felizes do dia, agonias e dificuldades, a discussão da noite centrou-se no nome do futuro irmão ou irmã, para além da disputa para a partilha do quarto com o benjamim. Com dois quartos para os filhos, com as meninas separadas dos meninos, será a natureza a escolher e não os argumentos esgrimidos de posse pelos quatro manos, que por entre aquele jantar melhorado não podiam dar maior alento aos pais nesta tão difícil tarefa de fazer nascer, criar e educar mais um filho. Os pingos da chuva lá fora, o ambiente quente da cozinha e aquela lâmpada amarelada do fumo deram um quadro dourado a uma das mais ricas noites da família. Foi tudo tão rápido ao ponto de aparecer do nada o ditador do relógio a obrigar ao beijo de boa noite para os mais novos. O casal permaneceu à mesa. Joaquim na testeira com Maria do seu lado direito. De mãos dadas, fortalecidos, trocaram um olhar cúmplice que não esconde a alegria, mas também a preocupação de levar a bom porto este desafio divino pela vida. Maria, com uma formação vincadamente católica herdada dos seus pais e das agruras da vida, é hoje, mais do que ontem, uma mulher feliz. E não teve dificuldade em encontrar na sua memória um Salmo para ilustrar este fim de dia, antes de um beijo cheio de significado no seu companheiro de viagem: “Os filhos são herança do Senhor, uma recompensa que ele dá.

João Paulo Teles

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